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1 Astronomia extragaláctica e galáxias barradas: uma perspectiva histórica

O nascimento da Astronomia Extragaláctica foi o resultado de uma longa gestação nas décadas que marcaram a passagem do séc. XIX para o séc. XX. O início de sua história, porém, nos remete a meados do séc. XVIII, quando aparecem as primeiras especulações filosóficas (Wright 1750) acerca de um universo cujos constituintes básicos seriam sistemas estelares individuais semelhantes à nossa galáxia, a Via Láctea (ou Galáxia). Poucos anos mais tarde, Kant (1755) desenvolve esta idéia, aperfeiçoando-a ao ponto de identificar tais entidades com as pequenas e tênues manchas esbranquiçadas observadas por de Maupertius (1742), que as definiu como apenas pouco mais brilhantes que o negro firmamento. Entretanto, a teoria dos ``universos-ilha'', como ficou conhecida, não retumbou entre os observadores do céu, permanecendo no círculo de filósofos e pensadores. Os observadores trataram de coletar dados: observar e catalogar as então chamadas nebulosas. Liderando o grupo de observadores estavam W. Herschel (1738-1822) e seu filho J. Herschel (1792-1871), este último realizando observações também no hemisfério Sul, que partiram do catálogo de Messier (1784; ver também Shapley & Davis 1917) com pouco mais de uma centena de objetos. Como resultado de um enorme esforço observacional, sugiram o ``General Catalogue'' em 1864, o ``New General Catalogue'' (Dreyer 1890), e o ``Index Catalogue'' (Dreyer 1895, 1910), com milhares de objetos.

Com este grande corpo de dados, logo ficou claro que uma parte relativamente pequena destas nebulosas era certamente associada à Galáxia. Foram denominadas de nebulosas galácticas e separadas em duas categorias: as planetárias, por serem aparentemente semelhantes a planetas quando vistas pela ocular dos telescópios, mas que hoje sabemos serem o resultado da evolução de estrelas relativamente pouco massivas, e as difusas, que de fato são associações e aglomerados estelares. A indicação de que estas nebulosas eram parte da nossa galáxia vinha a partir de 3 argumentos: (i) as estrelas eram quase sempre resolvidas, (ii) havia exemplos claros de associação com nuvens de gás e poeira, e (iii) eram usualmente encontradas no cinturão da Via Láctea, assim como os aglomerados estelares abertos, ou galácticos (ver Hubble 1936).

A maior parte das nebulosas, no entanto, eram pequenas, simétricas, não resolvidas em estrelas, e eram encontradas em todo o céu, exceto na Via Láctea. Além disso, em grande parte delas se observava uma estrutura espiral. A questão que surgiu naturalmente e vinculou a observação ao pensamento filosófico era: são estas nebulosas extragalácticas? São elas universos-ilha?

Por volta de 1910, Slipher, no Observatório Lowell, obteve espectros heróicos (com exposições de até 80 horas!) para várias destas nebulosas, indicando que estas possuíam velocidades radiais altíssimas, as maiores até então observadas. Sendo as velocidades radiais das nebulosas e das estrelas na Galáxia tão díspares, pareceu a todos então que as nebulosas e as estrelas não poderiam estar associadas. Além disso, se fossem entidades internas à Galáxia, as altas velocidades radiais das nebulosas deveriam produzir movimentos peculiares mensuráveis, o que não era detectado (ver Berendzen, Seeley & Hart 1976; ver também Binney & Merrifield 1998, doravante BM98). Por outro lado, van Maanen (1916, 1923), utilizando técnicas astrométricas, argumentou ter detectado rotação em 7 nebulosas espirais. Ora, essas altas rotações angulares implicavam em que as nebulosas fizessem parte da Galáxia, já que, de outro modo, a velocidade linear de rotação ultrapassaria a velocidade da luz! Para M33, cuja velocidade linear de rotação era conhecida via espectroscopia, sua rotação angular erroneamente inferida por van Maanen indicava uma distância à Terra de apenas 2100 anos-luz. A contradição era óbvia; havia um impasse a ser resolvido!

Haviam então duas correntes de pensamento. Os argumentos, de um lado e de outro, foram apresentados e confrontados no que ficou conhecido como o Grande Debate, que ocorreu na Academia Nacional de Ciências de Washington, em 26 de Abril de 1920. Seus protagonistas foram Harlow Shapley do Observatório de Monte Wilson e Heber D. Curtis do Observatório Lick. Curtis (1921) argumentava, utilizando observações do que todos acreditavam serem novas em M31 (hoje sabemos que eram de fato supernovas), que este sistema se encontrava a 300 mil anos-luz de distância. Seu tamanho angular portanto indicava um tamanho linear de cerca de 10 mil anos-luz, similar ao modelo de Kapteyn para a Galáxia (Kapteyn & van Rhijn 1920; Kapteyn 1922). Além disso, se as nebulosas fossem sistemas similares entre si, suas distâncias deveriam variar de até um fator 1000, já que assim variavam seus tamanhos angulares, desde 2 graus para M31 até alguns segundos de arco para as nebulosas mais tênues. Curtis, portanto, liderava aqueles que acreditavam nas nebulosas como objetos extragalácticos e similares à Galáxia. Argumentando em outra frente, Shapley (1921) acertadamente concluía que a absorção de luz pelo meio interestelar tornava o modelo de Kapteyn errôneo e, utilizando uma ampla amostra de aglomerados estelares globulares, sugeria para a Galáxia um tamanho de 300 mil anos-luz. Hoje, porém, sabemos que as estimativas de distância para estes aglomerados realizadas por Shapley continham fonte substancial de erro. Shapley também argumentava que algumas propriedades da Galáxia a diferenciavam das nebulosas e, portanto, estas não poderiam ser sistemas similares. Dizia ele que: (i) o brilho superficial da Galáxia é menor do que o das nebulosas, (ii) estas por sua vez possuem estrelas azuis em maior abundância que a Galáxia, e (iii) para as nebulosas terem as mesmas dimensões lineares que a Galáxia precisam estar a distâncias inconcebíveis (para a época!). Entretanto, o argumento mais forte de Shapley eram as observações de van Maanen. Hoje sabemos que os itens (i) e (ii) acima são discrepâncias provocadas pela absorção interestelar.

A discussão central, portanto, girava em torno do tamanho da Galáxia, o que implicaria em as nebulosas serem extragalácticas (no caso defendido por Curtis para uma Galáxia pequena) ou parte do nosso sistema estelar (caso defendido por Shapley para uma Galáxia grande). Hoje sabemos que o tamanho da Galáxia é, de fato, intermediário entre as duas argumentações. Curtis, no entanto, cometeu dois erros que acabaram se cancelando mutuamente. Por um lado, o modelo de Kapteyn de fato era exageradamente pequeno, devido aos efeitos da absorção de luz pelo meio interestelar. Por outro lado, como Curtis assumiu que as estrelas que ele havia utilizado para estimar a distância a M31 eram novas, mas que de fato eram uma então desconhecida classe de estrelas, as supernovas, isso o levou a deduzir uma distância menor e, portanto, um tamanho menor, para M31.

Aos poucos, mas de forma definitiva, o impasse foi se dissolvendo. Entre 1923 e 1935, vários observadores, liderados por Lundmark, refizeram as medidas de van Maanen, não encontrando qualquer rotação perceptível, o que foi um assombro, visto que van Maanen havia sido muito cuidadoso e rigoroso em sua análise, tendo tomado todas as precauções necessárias. A cartada final foi dada por Hubble (1925, 1926, 1929), que pôde identificar, com o então maior telescópio disponível (o refletor de 100 polegadas de Monte Wilson), estrelas variáveis cefeidas em NGC 6822, M33 e M31. Estas estrelas, conforme mostrado por Leavitt (1912) em um trabalho hercúleo com milhares de objetos nas Nuvens de Magalhães, serviam como uma precisa e poderosa vela padrão para a medida de distâncias. É interessante notar que, nesta época, não havia dúvida de que as Nuvens de Magalhães fizessem parte da Galáxia. Os resultados de Hubble e seus colaboradores mostravam definitivamente que as nebulosas eram objetos extragalácticos. Para M33, por exemplo, a distância medida com as cefeidas foi de 720 mil anos-luz; muito superior, portanto, à exagerada dimensão da Galáxia proposta por Shapley. Nascia como tal a Astronomia Extragaláctica!

É interessante notar que, nas décadas que se seguiram, ainda havia um impasse a ser resolvido, e sua solução somente chegou durante a II Guerra Mundial. As cefeidas observadas por Hubble no disco de M31 eram de população estelar I, enquanto aquelas utilizadas por Leavitt, Shapley e Hubble para calibrar a relação período-luminosidade, que justamente faz das cefeidas uma vela padrão, eram de população estelar II. Acontece que, para o mesmo período de oscilação na luminosidade, as cefeidas de população I são 4 vezes mais luminosas que as cefeidas de população II (ver, e.g., Harrison 1981). Isto levou os pesquisadores de então a estimar um tamanho reduzido para todas as nebulosas extragalácticas, trazendo o desconforto de ter de assumir que o sistema estelar em que vivemos, a Galáxia, deveria por algum motivo ser especial. Foi somente quando Baade (1944) aproveitou-se dos blecautes em Los Angeles provocados pela guerra para poder resolver cefeidas no bojo de M31, com o telescópio de Monte Wilson, que percebeu-se a existência de populações estelares com propriedades fundamentais distintas. Foi descobrindo estas populações estelares que Baade aperfeiçoou a calibração das cefeidas, ao mesmo tempo revelando o tamanho real (duas vezes maior!) das galáxias e dobrando o tamanho do universo!

Uma prática comum no método científico é a classificação dos objetos sob estudo segundo certos padrões prontamente identificados. O objetivo de tal classificação (e sua utilidade) é o de exibir correlações entre suas diversas classes e os parâmetros que sejam relevantes no estudo, de forma a indicar pistas sobre a natureza de tais objetos. Com as galáxias não poderia ter sido diferente e, rapidamente, surgiram os sistemas de classificação de galáxias. Dentre estes, o mais importante, e a partir do qual se baseiam a maior parte dos sistemas de classificação mais modernos, foi o sistema de Hubble (1936) de classificação morfológica [ver revisões de de Vaucouleurs (1963), Sandage (1975) e van den Bergh (1997)]. Em linhas gerais, neste sistema temos galáxias de 3 tipos morfológicos: as elípticas, as espirais e as irregulares. Em minha Dissertação de Mestrado (Gadotti 1999; ver http://www.astro.iag.usp.br/$\sim$dimitri/mscthesis/mscthesis.html), uma descrição detalhada dos sistemas de classificação de galáxias é apresentada. Vale notar aqui que, já nos primórdios desta ciência, as galáxias barradas foram identificadas (como uma família paralela às espirais ordinárias, no famoso diapasão de Hubble), mas postas de lado, como casos raros, exceções. Certamente, isso contribuiu para que o estudo das barras estelares em galáxias fosse postergado. Evidentemente, como também uma prática comum às ciências, o estudo da estrutura, formação e evolução de galáxias teve início com aqueles sistemas mais simples, como as axissimétricas galáxias espirais ordinárias.

Vale notar a impressão causada pelas galáxias barradas no amanhecer destes estudos. Curtis (1918) foi o primeiro a chamar a atenção para estas galáxias peculiares. Hubble (1936) afirma que as barradas do tipo S0 têm um forma que lembra a letra grega $\Theta$ com um anel em torno da barra, ambas componentes bastante proeminentes. Em tipos mais tardios, ainda segundo Hubble, o anel dá lugar a braços que dão à galáxia um forma similar à letra S. Shapley (1961) se refere às barradas como ``aberrações'' e ``casos patológicos''! Entretanto, como será visto adiante, estudos recentes mostram que, ao contrário do que se imaginou no início, a maior parte das galáxias gigantes no universo local possui ao menos uma barra estelar e, além disso, é possível que todas as galáxias gigantes tenham componentes não axissimétricos em algum grau. Por volta de 30 anos atrás, físicos, matemáticos e astrônomos, teóricos e observacionais, começaram a estudar sistematicamente as galáxias barradas (e.g., Freeman 1975, 1976 e referências aí contidas) e os resultados interessantes que destes estudos surgiram só fizeram crescer o empenho em continuar estes estudos. Antes disso, o estudo de galáxias barradas se limitou a alguns dinamicistas, em particular, B. Lindblad e Oort, mas sempre com foco principal na dinâmica de discos em geral. Atualmente, embora ainda haja um sem número de questões e impasses sem resposta sobre os processos de formação e evolução de barras em galáxias, um quadro detalhado de informações emerge. E a conclusão imediata é a de que estes processos têm profundas implicações na estrutura, formação e evolução de galáxias de uma forma geral.


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Dimitri Gadotti 2004-02-03