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3 O cenário de evolução secular

Muitos estudos numéricos têm demonstrado que instabilidades dinâmicas em discos, tais como braços espirais2, mas, principalmente barras, podem ser responsáveis pela formação de bojos em escalas de tempo maiores que a escala de tempo dinâmica de galáxias (i.e., $ > 10^{8}$ anos).

Evidências observacionais mostram que mais da metade das galáxias brilhantes no universo local possuem barras. Muito trabalho a respeito desta estrutura galáctica foi realizado para que o nosso conhecimento sobre barras possa ser considerado hoje pouco mais do que qualitativo (veja Friedli 1999 para uma revisão).

Sabemos que, devido a instabilidades dinâmicas, é muito provável o surgimento espontâneo de uma barra em discos galácticos, e que estas estruturas também podem ser induzidas por galáxias companheiras interactuantes. Uma vez presentes, as barras produzem uma série de fenômenos evolutivos na galáxia hospedeira. Estudos teóricos (e.g., Friedli & Benz 1993, 1995 e referências aí contidas) mostram que, através de choques e torques gravitacionais, uma barra estelar é capaz de coletar gás das regiões externas do disco para as regiões internas. Assim, deve ocorrer uma mistura em grande escala do gás ao longo da galáxia, que, em princípio, deveria afetar o comportamento dos perfis de abundância de alguns elementos químicos. Em acordo com essa previsão, Martin & Roy (1994) e Zaritsky, Kennicutt & Huchra (1994) concluem, a partir de um estudo de abundância química em galáxias espirais, que as barradas tendem a apresentar gradientes da abundância O/H menos acentuados do que galáxias não-barradas. Além disso, Sakamoto et al. (1999) mostram que galáxias barradas apresentam uma maior concentração central de gás molecular (CO) do que galáxias ordinárias. Estes autores argumentam que estes resultados indicam que o transporte de gás ao longo da barra para as regiões centrais das galáxias deve ter ocorrido.

Por outro lado, simulações N-Corpos (e.g., Combes & Sanders 1981) mostram que uma barra que se desenvolve em um disco plano não permanece fina, i.e., não permanece no plano do disco, já que ressonâncias orbitais (e/ou as instabilidades ``bar-buckling'' ou ``fire-hose'') provocam o aquecimento vertical da barra, que se manifesta na formação de uma estrutura perpendicular ao plano do disco, ou seja, no espessamento da barra, em uma escala de tempo de cerca de 1 Giga-ano após a formação desta. Este espessamento é mais importante na região central da barra, que acaba desenvolvendo um bojo com morfologia retangular ou em forma de amendoim (Sellwood 1993). Em uma série de trabalhos recentes (Kuijken & Merrifield 1995; Merrifield & Kuijken 1999; Bureau & Athanassoula 1999; Athanassoula & Bureau 1999; Bureau & Freeman 1999; Bureau, Freeman & Athanassoula 1999) a natureza destes bojos foi estudada, considerando evidências observacionais em favor de mecanismos de acrescência ou de instabilidades em barras. Os resultados indicam que, apesar dos mecanismos de acrescência serem possíveis e prováveis, eles não são os mecanismos primários, e que instabilidades ``bar-buckling'' devem ser res-ponsáveis pela ocorrência da maioria dos bojos com estas morfologias. Estes resultados reforçam, portanto, a hipótese de que bojos retangulares ou em forma de amendoim são, de fato, galáxias barradas vistas de perfil, conforme sugerido por de Souza & dos Anjos (1987), e que o cenário de evolução secular em galáxias barradas deve gerar as morfologias observadas nestes tipos de bojos.

Além disso, o aumento da concentração de massa nas regiões centrais da galáxia, provocado pelo transporte de gás ao longo da barra, dá origem a órbitas estelares irregulares que transportam estrelas do disco para o bojo (e.g., Berentzen et al. 1998). Assim, temos, por um lado, o transporte de gás para as regiões centrais das galáxias que pode produzir surtos de formação estelar e o enriquecimento químico destas regiões. E, por outro lado, o transporte de estrelas do disco para o bojo via aquecimento vertical da barra e a indução de órbitas estelares irregulares. Dessa forma, os processos evolutivos relacionados a barras estelares podem ser responsáveis pela construção de bojos galácticos.

Norman, Sellwood & Hasan (1996), entre outros trabalhos teóricos, mostram que a concentração central de massa, induzida pela barra, faz com que as órbitas que a sustentam (entre essas as órbitas do tipo $x_{1}$, que são órbitas estáveis, de alta excentricidade, ao longo do eixo maior da barra) desapareçam. Portanto, a barra pode ser destruída devido aos processos que ela própria induz. Estes autores vão mais além, sugerindo que a formação da barra, sua dissolução e conseqüente construção do bojo, possa ser um processo recorrente.

O transporte de gás para as regiões centrais de galáxias, induzido pela barra, tem sido estudado também como uma possível alternativa para a alimentação de núcleos ativos de galáxias. Através de processos dinâmicos (desacoplamento), uma barra secundária pode surgir interna à barra primária e conduzir o gás até pequenas escalas de distância, próximas ao núcleo ativo (Shlosman, Frank & Begelman 1989; Shlosman, Begelman & Frank 1990). Erwin & Sparke (1998) apresentam galáxias onde a barra secundária pode ser identificada. Em NGC 2681, Erwin & Sparke (1999) encontram uma hierarquia de três barras. Embora ainda não haja um consenso a respeito da relação das barras com os núcleos ativos (Ho, Filippenko & Sargent 1997; Knapen 1998), a formação e dissolução de barras hierárquicas favorece ainda mais o cenário no qual a construção de bojos está intimamente ligada aos processos dinâmicos nos discos galácticos (Friedli & Martinet 1993). Neste último trabalho, é sugerido que a contínua construção do bojo pode transformar a morfologia de uma galáxia. Assim sendo, uma galáxia do tipo Sc pode, através destes processos de evolução secular, tornar-se uma galáxia do tipo Sb, fazendo com que pelo menos a seqüência tardia de Hubble ganhe um significado evolutivo entre tipos contíguos.

Muitos outros estudos observacionais dão suporte ao cenário de formação de bojos via evolução secular. A similaridade das cores em bandas largas de bojos e das regiões internas de discos, encontrada por Peletier & Balcells (1996) para uma amostra de espirais de tipo jovem, é um exemplo, já que indica que as idades e as metalicidades das estrelas nessas regiões são semelhantes, embora a degenerescência idade-metalicidade nas cores de populações estelares possa trazer incertezas. Courteau, de Jong & Broeils (1996 - veja também de Jong 1996b) mostram que existe uma correlação entre as escalas de comprimento de bojos e discos para uma amostra de espirais de tipos jovem e tardio. Estes resultados podem estar indicando que as formações de bojo e disco não podem ser fenômenos tão distintamente separados como no cenário monolítico, mas que deve existir uma conexão evolutiva entre essas duas componentes. Além disso, os surtos de formação estelar observados por Carollo et al. (1997) em bojos extragalácticos são naturalmente explicados no cenário de evolução secular.

Outras evidências que dão apoio a este cenário são encontradas em observações a respeito da dinâmica e cinemática de bojos. Kormendy (1982) mostra que bojos triaxiais, que são dinamicamente semelhantes a barras, têm uma velocidade máxima de rotação maior do que os bojos de galáxias ordinárias e, portanto, são mais semelhantes a discos. Neste artigo, Kormendy conclui que ``uma fração significativa do bojo em muitas galáxias barradas deve consistir de gás do disco que foi transportado para o centro pela barra. Na medida em que este gás se acumula, forma estrelas e dá origem a uma distribuição estelar muito centralmente concentrada, a qual é fotometricamente semelhante a um bojo, mas dinamicamente semelhante a um disco.''. Kormendy & Illingworth (1983) mostram que bojos de galáxias barradas têm, em geral, uma dispersão central de velocidade menor do que os bojos de galáxias ordinárias de mesma luminosidade. Como os discos têm uma dispersão central de velocidade menor do que bojos, este resultado é consistente com a hipótese de que os bojos em galáxias barradas foram acrescidos com material do disco, transportado pela barra. A semelhança entre a distribuição de elipticidades de bojos e discos também foi utilizada como um argumento de que as formações destas duas componentes são eventos conexos (Kormendy 1993). Outra evidência de que os processos evolutivos em barras contribuem para a formação de bojos vem do fato de que estrelas ricas em metais no bojo Galáctico possuem características cinemáticas de barras, enquanto que as estrelas pobres em metais nesta região não possuem esta propriedade (Rich & Terndrup 1997).

Entretanto, Wyse, Gilmore & Franx (1997) apontam para um problema potencial para a aplicabilidade geral deste cenário de formação de bojos. Este problema vem do fato de que as barras em galáxias espirais de tipo jovem possuem um perfil de luminosidade constante, enquanto que aquelas em espirais de tipo tardio têm perfis exponenciais, ou ainda mais abruptos. Por outro lado, a decomposição de perfis de luminosidade de galáxias espirais mostra que os discos e os bojos em espirais tardias são melhor ajustados por um perfil exponencial, enquanto que os bojos em espirais de tipo jovem têm um perfil mais próximo à lei $r^{1/4}$ (e.g., Courteau, de Jong & Broeils 1996). Estes resultados podem indicar que o cenário de evolução secular somente tem um importante papel na formação de bojos em espirais tardias.

Por outro lado, analisando a densidade no espaço de fase das estrelas no bojo e no disco da Galáxia (que têm valores típicos para outras galáxias também), Wyse (1998) mostra que bojos de galáxias não podem se formar através da instabilidade dinâmica de discos estelares puros; uma componente dissipativa (gás) precisa ser invocada para o processo, o que impõe vínculos nos modelos que se baseiam no cenário de evolução secular.

Apesar de Courteau, de Jong & Broeils (1996) afirmarem que a correlação entre os comprimentos de escala de bojos e discos é melhor compreendida em um modelo no qual o disco se forma primeiro e dá origem ao bojo, cada vez mais torna-se claro que os 3 cenários que acabamos de descrever devem ocorrer, e que a formação de bojos pode ser uma combinação destes 3 cenários. No caso da Galáxia, por exemplo, a pequena diferença nas idades de aglomerados globulares de mesma metalicidade, e a também pequena variação nas idades destes em relação à distância Galactocêntrica, favorece o cenário monolítico, já que, neste cenário, os aglomerados globulares se formariam rapidamente durante o colapso da protogaláxia. No entanto, a existência de alguns aglomerados globulares Galácticos que têm um comportamento anômalo indica que houve, em algum momento, a captura de companheiras anãs pela Galáxia (Stetson, VandenBergh & Bolte 1996). Além disso, todas as evidências observacionais e os resultados dos estudos numéricos descritos acima tornam pouco provável que os processos de evolução secular não tenham ocorrido, ou não ocorram, na Galáxia, principalmente porque muitas evidências apontam para a existência de uma barra em nosso sistema estelar (e.g., referências em Binney & Tremaine 1987).

A questão que permanece para ser respondida por estudos futuros é a de determinar a importância relativa de cada um destes cenários, e como o papel de cada um deles varia em diferentes condições físicas, como, por exemplo, em ambientes de diferentes densidades galácticas. Certamente, o estudo de galáxias em altos ``redshifts'', ou seja, a observação de galáxias no processo de formação, trará progressos na tentativa de obter estas respostas. Por exemplo, Abraham et al. (1994,1996) e van den Bergh et al. (1996) fazem um estudo das propriedades morfológicas de galáxias no ``Hubble Deep Field'', utilizando um sistema de classificação baseado na concentração central de luz e na assimetria dos objetos. Estes autores concluem que: (i) galáxias barradas são raras no ``Hubble Deep Field''; (ii) a fração de espirais de tipo jovem (i.e., com alta razão bojo/disco) é similar à mesma fração no Universo local, e (iii) a fração de objetos peculiares, ou em interação ou fusão é significativamente maior do que entre as galáxias próximas. Este resultado pode favorecer o cenário hierárquico. No entanto, Marleau & Simard (1998) obtêm parâmetros estruturais para as galáxias no ``Hubble Deep Field'', através da decomposição do perfil de brilho superficial destas galáxias em um perfil exponencial para o disco e um perfil de Sérsic para o bojo. Os resultados obtidos por Marleau e Simard contradizem os descritos acima, já que estes autores encontram que somente 8% dos objetos têm bojos dominantes. Este resultado claramente favorece um cenário no qual a formação do bojo ocorre posterior à do disco, tal como no cenário de evolução secular.



Footnotes

... espirais2
Ver, por exemplo, Zhang (1996,1998).

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Dimitri Gadotti 2003-10-06