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1 Introdução

Uma das grandes realizações de Edwin Hubble no período de 1926 a 1936 foi organizar e sintetizar, em um diagrama, padrões de galáxias representativos das morfologias observadas dos objetos que se encontram próximos e brilhantes. Este diagrama, conhecido como Sistema de Classificação de Hubble (SCH), com modificações que foram sendo introduzidas durante algumas décadas, é o que vem sendo amplamente utilizado até hoje na classificação morfológica de galáxias. Nesses trabalhos pioneiros, Hubble verificou que as galáxias podem ser naturalmente divididas em duas classes distintas, de acordo com suas características morfológicas, com o padrão comum de apresentarem simetria rotacional em torno de um núcleo central: as elípticas (E) e as espirais (S). A classe das elípticas é ca-racterizada basicamente por apresentar uma única componente, com morfologia esferoidal ou elipsoidal, cujo grau de elipticidade permite definir o indicador


\begin{displaymath}
n = {10{\left( 1 - {{b}\over a}\right) }},
\end{displaymath} (1)

onde $a$ e $b$ são, respectivamente, os semi-eixos maior e menor da galáxia. Dessa forma, $(1-b/a)$ denota a elipticidade do objeto, representando, portanto, diferentes estágios de elipticidade, desde as mais esféricas, até as mais achatadas, conforme as respectivas notações (E0, E1, E$n$, ..., E7). A classe das espirais foi definida basicamente como sendo aquela que possui pelo menos duas componentes, uma delas associada à região central, aproximadamente esférica, denominada bojo, e a outra relativa à distribuição de luz em um plano achatado, definida como disco fino. Hubble percebeu que as espirais podiam ser subdivididas em duas famílias distintas, definidas como ordinárias (S) e barradas (SB). As galáxias espirais ordinárias cumprem os requisitos da definição básica da classe, e portanto se caracterizam por terem somente duas componentes, o bojo e o disco, enquanto que nas barradas observa-se uma componente adicional, denominada barra. As espirais também caracterizam-se por terem diferentes estágios, ou seja, as famílias podem ser divididas nos estágios a, b e c, conforme os critérios a seguir: (1) a abertura e definição dos braços espirais, (2) a razão entre as luminosidades de bojo e disco e (3) a resolução do disco e dos braços em estrelas e regiões HII. Assim sendo, uma galáxia do tipo Sa (ou SBa), por exemplo, normalmente apresenta uma razão bojo/disco maior do que aquela apresentada por uma galáxia do tipo Sc (ou SBc), bem como braços menos definidos e com menor número de regiões HII e estrelas resolvidas.

Observando que as galáxias ao fim da seqüência das elípticas (E7) têm características morfológicas relativamente similares àquelas no início da seqüência das espirais (Sa), Hubble sugeriu que as duas seqüências fossem contíguas, e que as espirais barradas formassem uma seqüência paralela à de espirais ordinárias, sintetizando, desta forma, o seu sistema de classificação de galáxias, como ilustrado em seu famoso diagrama, reproduzido na Figura 1.1. Mais ainda, definiu que as galáxias situadas à esquerda em seu diagrama são genericamente denominadas do tipo ``early'' (jovem) em relação àquelas situadas à direita, denominadas do tipo ``late'' (tardio). Atualmente, os termos ``jovem'' e ``tardio'' são utilizados somente para apontar a posição de uma galáxia no diagrama de classificação, sem qualquer conotação ao significado evolutivo. Portanto, neste sistema de classificação, uma galáxia Sc é mais tardia do que uma Sa, bem como uma Sa é mais jovem do que uma Sb, por exemplo.

Figure: O sistema de classificação morfológica de galáxias proposto por Hubble em 1936. Note que a classe das lenticulares ainda era de natureza um tanto hipotética (Extraído de Hubble 1936).
\begin{figure}\epsfxsize =15cm
\centerline{\epsfbox{hubble.eps}}\end{figure}

No entanto, ao perceber que as diferenças entre propriedades de elípticas e espirais são demasiado abruptas, Hubble introduziu uma nova classe de galáxias, a princípio hipotética, que é a classe das galáxias lenticulares, que teriam propriedades gerais intermediárias entre as elípticas e as espirais. As lenticulares seriam então mais tardias do que as E7, porém não chegariam a apresentar estrutura espiral. Posteriormente, verificou-se a existência real dessa classe de galáxias, tornando útil e natural sua introdução no sistema de classificação, apesar de haver ainda hoje grande controvérsia em relação à homogeneidade das propriedades gerais desta classe. As galáxias lenticulares também possuem duas grandes famílias, a das ordinárias (S0) e a das barradas (SB0). Aquelas galáxias cuja morfologia não apresenta simetria rotacional, e portanto não têm lugar no diagrama de Hubble, são denominadas irregulares (Irr). Na época da elaboração do diagrama de Hubble, somente cerca de 3% das galáxias eram classificadas como Irr (Hubble 1926,1936).

Ao longo dos anos, algumas etapas de refinamento foram aplicadas ao SCH, motivadas principalmente pelo aumento do número de catálogos que surgiram a partir da inspeção de galáxias em placas fotográficas de grande campo. Na revisão do sistema de Hubble, por G. de Vaucouleurs (1963), as alterações1 mais importantes introduzidas foram:

1 Refinamento das subclasses.

São introduzidos estágios intermediários na classe das lenticulares e na classe das espirais, como Sab e Sbc, por exemplo. Além disso, essa seqüência foi estendida para as subclasses cd, d, dm e m, onde m denota as espirais do tipo magelânicas. A classe das irregulares é substituída pelas subclasses Im e I, ordinárias ou barradas.

2 Refinamento da classificação de barras.

São introduzidas as notações SA para galáxias ordinárias e SAB para os casos transitórios (ou incertos) entre SA e SB.

3 Introdução das variedades r e s.

São adicionados na notação os símbolos (r), para aquelas galáxias em que os braços se iniciam tangentes a um anel, no qual a barra termina (no caso de a galáxia ser barrada), e (s), para as galáxias em que os braços partem das extremidades da barra (ou do bojo, no caso de a galáxia ser ordinária). Também há a notação (rs) para os casos transitórios. Embora essa notação seja mais própria para galáxias barradas, também pode ser utilizada para galáxias ordinárias.

Com o desenvolvimento de detectores, telescópios e técnicas observacionais, e o explosivo aumento do número de galáxias estudadas, novos catálogos foram publicados e pequenas alterações ao SCH foram sendo realizadas para representar com melhor precisão diferentes sutilezas morfológicas, de tal forma que a classificação morfológica de galáxias revisada, e amplamente utilizada, foi sintetizada como pode ser visto no ``Third Reference Catalog of Bright Galaxies'' (de Vaucouleurs et al. 1991 - doravante RC3). Uma dessas modificações consistiu na introdução do parâmetro T (índice do estágio de Hubble), que é definido por uma escala numérica, na qual galáxias do tipo Sa têm T = 1, galáxias Sab têm T = 2, Sb têm T = 3, e assim por diante. Por outro lado, galáxias S0/a têm T = 0, e as de tipos mais jovens possuem T's negativos. Para uma revisão sobre classificação de galáxias veja Sandage (1975); ou também van den Bergh (1997).

Outros sistemas de classificação de galáxias foram propostos com critérios e parâme-tros novos e distintos. Entretanto, os sistemas de classificação posteriores ao de Hubble se baseiam, ainda que parcialmente, no SCH, e podem ser considerados complementares. Morgan (1958), por exemplo, utiliza a concentração central de luz como critério de classificação e encontra correlação entre este parâmetro, o tipo espectral dominante na galáxia e o tipo de Hubble. Essa correlação é esperada, já que a razão bojo/disco diminui ao longo da seqüência de Hubble, quando se parte dos tipos jovens para os tipos tardios, e o tipo espectral dominante nestas componentes é notavelmente distinto. Este sistema de classificação, pouco utilizado nas décadas passadas, tem recentemente sido resgatado, devido à dificuldade em se utilizar o SCH em galáxias a grandes profundidades. Abraham et al. (1996), por exemplo, utilizam, para a classificação de galáxias a altos ``redshifts'' no ``Hubble Deep Field'', os parâmetros de concentração central de luz e de assimetria, além do tipo de Hubble, o que permite uma classificação mais quantitativa e objetiva. A concentração central de luz tem sido usada também em algoritmos de classificação automática (Abraham et al. 1994). Aplicações recentes deste sistema de classificação, utilizando a concentração central de luz em galáxias no aglomerado de Virgo, podem ser vistas em Koopmann & Kenney (1998). van den Bergh (1960a,b) adiciona ao sistema de Hubble cinco classes de luminosidade, referentes à luminosidade absoluta das galáxias, e encontra correlação entre estas classes e a morfologia dos braços espirais, no sentido de que as galáxias mais luminosas apresentam braços bem definidos e desenvolvidos. Mais recentemente, Elmegreen & Elmegreen (1982a,b) desenvolveram um sistema de classificação morfológica dos braços espirais, que parte do tipo 1 (floculento) em que os braços têm uma aparência não uniforme, caótica e pouco definida, até o tipo 12 (``grand design'') no qual os braços são simétricos, bem definidos e desenvolvidos. Nesse trabalho, os autores concluem que existe uma forte tendência de as galáxias barradas, ou com companheiras próximas, apresentarem braços com o padrão ``grand design''.

Um sistema de classificação que se diferencia substancialmente dos acima citados é aquele proposto por Humason (1936) e Morgan & Mayall (1957; ver também Sodré & Cuevas 1994), e consiste na classificação espectral de galáxias. Neste sistema, uma galáxia é classificada segundo seu espectro integrado, o que também permite uma classificação quantitativa e objetiva. É importante ressaltar que existe uma forte correlação entre os tipos espectrais de galáxias e os tipos de Hubble (e.g., Sodré & Cuevas 1997).

Apesar de o sistema de classificação de Hubble ser demasiado simples e subjetivo, seu sucesso reside exatamente em ignorar a miríade de detalhes na estrutura das galáxias, que, se considerados, forçariam a introdução de um sem-número de classes e tornariam a classificação extremamente penosa e complexa. Ao contrário, este sistema se concentra em características e padrões globais.

Por outro lado, van den Bergh (1997) argumenta que o sistema de classificação de Hubble incorpora somente galáxias luminosas, próximas e em ambientes pouco densos, como no campo ou em aglomerados pobres. Desta forma, torna-se difícil utilizar o sistema de Hubble para classificar, por exemplo, galáxias a altos ``redshifts'', galáxias anãs e galáxias de baixo brilho superficial. Além disso, van den Bergh enfatiza que o SCH não incorpora a classe das lenticulares de maneira satisfatória, já que esta classe parece ser tipicamente menos luminosa do que as elípticas e também menos luminosa do que as espirais do tipo Sa. van den Bergh continua, salientando que o SCH tão pouco incorpora adequadamente as galáxias cD's, tipicamente presentes nas regiões centrais de aglomerados, que parecem resultar de fusões entre galáxias. O mesmo parece ocorrer com as elípticas, que no SCH são posicionadas em função da elipticidade projetada, mas que recentemente têm sido apontadas como tendo também 2 famílias: a das ``boxy'' e a das ``disky''. Uma tentativa de incorporar as diferentes famílias de elípticas, bem como as irregulares ordinárias e barradas, foi proposta por Kormendy & Bender (1996). Uma tentativa de incorporar ao SCH todas as classes que não estão devidamente representadas na sequência de Hubble, utilizando um diagrama tri-dimensional, foi feita por van den Bergh (1997).

Evidentemente, o valor de um sistema de classificação depende de sua utilidade, ou de sua capacidade em exibir correlações entre suas classes e vários parâmetros físicos relevantes, conectando, por exemplo, as propriedades morfológicas aparentes nos sistemas e as suas propriedades físicas. Assim, um sistema de classificação útil deve levar à formulação de hipóteses e previsões que possam contribuir para o desenvolvimento de modelos a res-peito da formação, estrutura e evolução de galáxias. Nesse aspecto, é notória a utilidade da classificação de Hubble. O índice de cor integrado de galáxias, por exemplo, é uma propriedade física que se correlaciona com os tipos morfológicos de Hubble, no sentido de que galáxias de tipo jovem são mais vermelhas que as de tipo tardio, indicando a população estelar que domina a emissão de luz em cada classe morfológica.

Na seqüência das espirais, algumas tendências podem ser identificadas quando se parte dos tipos jovens para os tardios: (1) o aumento da fração da massa total na forma de gás e poeira no meio interestelar, (2) o aumento da luminosidade absoluta das estrelas e regiões HII mais brilhantes resolvidas nos braços espirais e (3) o aumento no tamanho e no número de regiões HII resolvidas nos braços. A maior fração de gás nos tipos tardios indica que estes sistemas converteram gás em estrelas com menor rapidez do que os tipos mais jovens (Larson 1990). Portanto, as espirais de tipo jovem consumiram praticamente todo o seu gás e hoje observamos uma maior fração de gás nas espirais tardias. Conseqüentemente, a taxa de formação estelar nas espirais tardias resulta ser também mais elevada atualmente. Luminosidade absoluta, massa total e a abundância de certos elementos químicos como o Oxigênio e o Ferro são outros exemplos de parâmetros físicos fundamentais que se correlacionam com os tipos de Hubble (veja Roberts & Haynes 1994 para uma revisão).

Apesar de ser um dos critérios de classificação no sistema de Hubble, principalmente para as galáxias vistas de perfil, a correlação entre a razão bojo/disco e os tipos morfológicos apresenta considerável dispersão, i.e., a tendência desta razão de diminuir em direção aos tipos tardios reflete somente um comportamento médio. Assim, podemos encontrar sistemas de mesma subclasse, mesma luminosidade total, mas com razões entre as luminosidades de bojo e disco bastante diversas. Como exemplo, entre muitos outros, pode-se citar o caso de NGC 4800 e NGC 1068, que podem ser examinadas em ``The Hubble Atlas of Galaxies'' (Sandage 1961). Ambos os sistemas são classificados como Sb, mas NGC 4800 possui um bojo muito mais proeminente que NGC 1068. Isto ocorre porque o critério fundamental utilizado na classificação é o grau de abertura e definição dos braços, e não a razão bojo/disco.

Evidentemente, toda essa variedade nas propriedades e na estrutura de galáxias deve estar relacionada aos processos de formação e evolução de galáxias. Por exemplo, galáxias de mesmo tipo morfológico, porém com diferentes razões bojo/disco, podem apresentar essa diferença devido ao fato de terem sofrido diferentes processos durante suas evoluções. Os processos que envolvem a formação e a evolução das componentes bojo e disco devem ter ocorrido de maneira distinta entre essas galáxias. Uma informação importante que pode nos trazer pistas a respeito dos diferentes processos evolutivos que ocorrem em galáxias é a análise de índices de cor. Estes índices proporcionam informações a respeito da população estelar e da história de formação estelar em galáxias.

O estudo de cores em galáxias, em particular, da cor integrada em bandas largas, tem sido realizado para obter informações a respeito da população estelar (e.g., Searle, Sargent & Bagnuolo 1973; Tinsley 1980; Frogel 1985; Peletier 1989; Silva & Elston 1994), bem como da extinção causada pela poeira interestelar (e.g., Evans 1994; Peletier et al. 1994). O uso de técnicas de fotometria superficial de cores em bandas largas, principalmente nos estudos que envolvem um enfoque estatístico, praticamente não foi realizado. Uma exceção é a tese de doutoramento de R.S. de Jong, no ``Kapteyn Astronomical Institute'' (de Jong & van der Kruit 1994; de Jong 1996a,b,c).

Uma possibilidade de avaliar o comportamento da cor em galáxias, e portanto da distribuição da população estelar, que tem sido pouco explorada na literatura, é utilizar a distribuição radial de cor, ou seja, o perfil de cor. Esta informação pode oferecer também indicações sobre cenários de formação de bojos.

Nessa Dissertação, estudamos os índices de cor (B-V) e (U-B) ao longo das componentes bojo e disco de galáxias espirais do tipo Sbc, ordinárias e barradas. Neste estudo, damos especial ênfase às previsões dos cenários de formação de bojos nesta classe de galáxias. Assim, no restante deste Capítulo discorreremos brevemente acerca de alguns dos principais cenários de formação e evolução, e suas previsões. Finalizaremos o Capítulo 1 introduzindo com maior profundidade os objetivos deste trabalho.



Footnotes

... c\ oes1
Parte destas alterações já havia sido vislumbrada em Hubble (1936).


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Dimitri Gadotti 2003-10-06